segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O dia em que Maria veio morar com a gente

Maria tentava se concentrar em sua leitura, mesmo com o balanço do ônibus. Lendo, quase não vê o tempo passar, pois a viagem é longa até o Assentamento Paraíso, onde faz pesquisa sobre os moradores de lá. Ainda bem que tem uma bolsa de estudos. O dinheiro que ganha com as pesquisas mal dá pra pagar o aluguel de seu apartamento na zona rica do Rio. Não sobra nada pra frequentar os mesmos lugares que suas vizinhas ou se vestir igual a elas. Isso causa um pequeno desconforto em Maria, que às vezes se sente melhor no assentamento, onde é paparicada pelas crianças que fazem a maior festa quando ela chega. Também, não é todo dia que eles têm a oportunidade de manipular uma máquina digital. Fingem que são modelos famosas e Maria nem se preocupa se o seu instrumento de trabalho vai estragar ou não, afinal, uma máquina nova daquelas não custa tanto, mas ver as crianças se transformando é danado de bom.

Alexandre, líder do assentamento, pergunta por que ela não sai da zona rica e vem morar aqui, mas Maria morre de medo de não conseguir se formar na faculdade devido à distância, já que foi tão difícil arrumar essa bolsa. Todas as tentativas de mudar para um apartamento mais barato não funcionaram e Maria fica cada dia mais frustrada. Na verdade, ela sabe que parte desse desânimo em continuar na zona rica vem da possibilidade de ter sua própria casa no assentamento e, além do mais, morar aqui ajudaria muito em sua pesquisa.

Maria toma uma decisão. O dinheiro que deixou de pagar o aluguel é suficiente para levantar sua casa. Alexandre comandou o mutirão pra virar a laje e em poucos dias a casa estava pronta pra morar. Maria se identifica muito com a roda de poesias que acontece quase toda semana. Se por um lado conhece tudo sobre a literatura mais formal, por outro se deleita com o que é escrito pelos próprios moradores.

O duro é acordar três horas mais cedo do que estava acostumada.
E a condução? Vixi! Se antes dormia dez, onze da noite, agora uma da manhã é pouco pra chegar em casa. Na última terça chegou preocupada, pois não havia tido tempo de adiantar a janta. Lembrou-se dos vários vizinhos que sempre lhe convidam pra uma boquinha e dessa vez resolveu aceitar. Primeiro foi na casa de dona Gertrudes e depois na laje do Jeremias. A solidão da zona rica era substituída pelo carinho da zona pobre.

A madrugada de hoje parece barulhenta. Tem um movimento estranho na vila ao lado. Os poucos vizinhos que estão acordados correm pra dentro de suas casas e Maria faz o mesmo. Ela não sabe se deve se esconder ou ficar na rua. É difícil ficar em casa ouvindo os gritos quem vêm lá de fora. Podem estar precisando de ajuda. Ela sai e a cena que vê é dura. Metade dos barracos da parte baixa está ardendo em chamas. Os adultos gritam e as crianças choram. Maria corre em direção ao tumulto. Uns dizem que foi a polícia, outros os bandidos, outros ainda, que a polícia é os bandidos. Maria não entende o que está acontecendo, mas oferece abrigo para os que tiveram seus barracos queimados.

Quando acorda no dia seguinte, os vizinhos já estão construindo novos barracos. Muitas famílias vão embora. Talvez realmente não valesse a pena arriscar tanto assim a vida, mas Maria estava completamente levada pela emoção e pedia, quase que implorando, pra que eles não desistissem. Fraca, quem acaba desistindo é ela, que vai morar com uma amiga da faculdade.
Alguns dias depois Maria volta e traz sua amiga Amanda, que está quase se formando em direito. Elas se reúnem com os moradores e os orientam na forma como proceder pra denunciar os policiais criminosos. As queimadas são interrompidas. Muitos acham que foi a série de denúncias, outros, que os policiais desistiram pela resistência do povo. Seja lá o que houve, Maria nunca mais foi a mesma. Uma sensação de satisfação a domina, por ter se transformado numa pessoa viva... Viva como são os personagens que tanto pesquisou.

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