quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

La máquina

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Em la máquina


Me sinto nos anos 80


No momento mágico de minha geração



Em la máquina


Viajo no tempo



No tempo em que sonhava com um mundo igual


No tempo que resiste à ação do próprio tempo


No tempo que resiste ao momento



Que seria o momento?


O tempo das culturas homogeneizadas?


Das puras e higienizadas?


A sociedade dos mesmos


Onde tudo é igual


Provisório


Contraditório


Diferente; e


Social



Em la máquina


Me sinto incoerente


Me sinto gente


Tenho vontade de abraçar a gente


Por que somos doentes?


Aprendemos o que é igual?



Sinto isso


Em la máquina


.


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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Cinema é igual o rap

Amanhece mais um dia na periferia. Como toda manhã, Juca caminha sonolento pelas ruas da Baixada Fluminense. A imensa fila do trem quase não o incomoda mais. A rotina de estar um dia após o outro dia ali, transforma esse esperar numa coisa tão mecânica que Juca já nem percebe. Poucos imaginam o porquê de ele sempre pegar o trem no sentido oposto ao do centro. É que prefere acordar mais cedo e voltar duas estações até o ponto final, só para ter o privilégio de viajar sentado. Empurrões, dores nas pernas e sarradas não são problemas pra Juca. Nem mesmo o perigo de cair nos trilhos por conta da porta estar aberta.

Marcelinho, o dono da barraca onde Juca trabalha no camelódromo do centro, vira-e-mexe chama sua atenção, por ele não fazer a propaganda, gritando, como os outros camelôs fazem. É que Juca é tímido e prefere usar o intervalo entre um cliente e outro pra escrever seus raps. Sabe muito bem que não leva jeito para o ofício das vendas e desde que descobriu seu dom para a arte, vê no rap uma chance de ganhar dinheiro fazendo o que gosta.

Após muitas tentativas frustradas de descobrir o caminho do sucesso, Juca decide que um videoclipe seria um ótimo impulso, afinal, num país televisivo como o Brasil, não precisa ser nenhum estrategista pra perceber isso. Ele tem uma conversa com o Mc Cabrito e toma um tremendo susto, ao saber como o custo é alto. Levaria pelo menos três anos trabalhando no camelódromo para juntar o dinheiro necessário.

Quase todo mundo no rap faz outra coisa pra sobreviver. O Luiz é motoboy, Raimundo corta cabelo, Paçoca trafica, Cezar é ator... O Cezar acha que Juca deveria produzir esse clipe de forma independente. Afinal, não foi sempre assim que o hip hop batalhou, no independente?

Planejou tudo com a Cia de teatro de Cezar, tim-tim por tim-tim. Rabicó pede a câmera de sua escola, Piolho transporta o equipamento, Mariana usa o telefone de seu trabalho: em dois fins de semana, tudo filmado. Juca ficou surpreso ao descobrir que a edição de um vídeo é tão parecida com a de um rap. Valeu a pena passar parte de sua vida em frente a seu computador, editando raps.

Vídeo pronto... Mas o que fazer com ele? O cara da MTV, que havia prometido exibi-lo, não está mais no programa. Todo o dinheiro se foi com transporte e alimentação. Não sobrou nem mesmo pra comprar a fita de finalização. O sonho do protagonismo parecia perdido, mas pra não deixar o vídeo parado, Juca começou a inscrevê-lo em festivais de cinema.

Uns achavam que festivais são para filmes, não para clipes. Outros, que isso é coisa de playboy, que não terá a menor chance. Foi difícil receber um comentário de apoio a suas ideias, mas pra surpresa de todos, até mesmo de Juca, o clipe começou a ser elogiado. Ele conheceu todo o país através dos festivais que participou e o que é melhor, sempre com sua mix-tape debaixo do braço, conseguia vender várias cópias e difundir ainda mais o seu trabalho de rap.

Os colegas do camelódromo gostaram muito de ver o amigo fazendo tanto sucesso. Só quem não gostou nadinha foi o Marcelinho, seu chefe. Se antes Juca perdia clientes escrevendo raps, agora ele quase não atendia mais na barraca. Enquanto os outros camelôs traziam ideias pra Juca fazer um documentário sobre o camelódromo, Marcelinho o ameaçava de demissão, caso as vendas não voltassem ao normal. Juca não pensava em outra coisa a não ser sair do camelódromo e viver só de cinema. Os outros camelôs fizeram uma vaquinha para o tal documentário, mas ainda não era suficiente. Juca convidou a galera da escola e pediu uns dias de folga ao Marcelinho, mas ele disse que Juca precisa decidir: , ou vende ou faz filmes.

O primeiro festival foi decepcionante. Ninguém aplaudiu ou votou em seu documentário. Talvez nem valesse a pena insistir mais. Se não fosse pelos amigos da escola que continuaram a inscrever o filme, Juca nem participaria mais de festivais de cinema. Quando recebeu uma menção honrosa, Juca foi aos céus. Todos os grupos de rap lhe homenagearam e mais uma vez se viu com aquela sensação de missão cumprida. Sua alegria só não se prolongou até o dia seguinte, devido aos comentários da crítica, que não poupou sua obra, mas uma coisa era: os camelôs ficaram emocionados em ver suas caras, belas caras, caras pretas na telona do cinema e perceberem que a partir daquele dia não seriam mais anônimos. Até mesmo Marcelinho parou de chatear Juca, toda vez que um cliente vinha pedir para ele autografar um DVD.

O dia em que Maria veio morar com a gente

Maria tentava se concentrar em sua leitura, mesmo com o balanço do ônibus. Lendo, quase não vê o tempo passar, pois a viagem é longa até o Assentamento Paraíso, onde faz pesquisa sobre os moradores de lá. Ainda bem que tem uma bolsa de estudos. O dinheiro que ganha com as pesquisas mal dá pra pagar o aluguel de seu apartamento na zona rica do Rio. Não sobra nada pra frequentar os mesmos lugares que suas vizinhas ou se vestir igual a elas. Isso causa um pequeno desconforto em Maria, que às vezes se sente melhor no assentamento, onde é paparicada pelas crianças que fazem a maior festa quando ela chega. Também, não é todo dia que eles têm a oportunidade de manipular uma máquina digital. Fingem que são modelos famosas e Maria nem se preocupa se o seu instrumento de trabalho vai estragar ou não, afinal, uma máquina nova daquelas não custa tanto, mas ver as crianças se transformando é danado de bom.

Alexandre, líder do assentamento, pergunta por que ela não sai da zona rica e vem morar aqui, mas Maria morre de medo de não conseguir se formar na faculdade devido à distância, já que foi tão difícil arrumar essa bolsa. Todas as tentativas de mudar para um apartamento mais barato não funcionaram e Maria fica cada dia mais frustrada. Na verdade, ela sabe que parte desse desânimo em continuar na zona rica vem da possibilidade de ter sua própria casa no assentamento e, além do mais, morar aqui ajudaria muito em sua pesquisa.

Maria toma uma decisão. O dinheiro que deixou de pagar o aluguel é suficiente para levantar sua casa. Alexandre comandou o mutirão pra virar a laje e em poucos dias a casa estava pronta pra morar. Maria se identifica muito com a roda de poesias que acontece quase toda semana. Se por um lado conhece tudo sobre a literatura mais formal, por outro se deleita com o que é escrito pelos próprios moradores.

O duro é acordar três horas mais cedo do que estava acostumada.
E a condução? Vixi! Se antes dormia dez, onze da noite, agora uma da manhã é pouco pra chegar em casa. Na última terça chegou preocupada, pois não havia tido tempo de adiantar a janta. Lembrou-se dos vários vizinhos que sempre lhe convidam pra uma boquinha e dessa vez resolveu aceitar. Primeiro foi na casa de dona Gertrudes e depois na laje do Jeremias. A solidão da zona rica era substituída pelo carinho da zona pobre.

A madrugada de hoje parece barulhenta. Tem um movimento estranho na vila ao lado. Os poucos vizinhos que estão acordados correm pra dentro de suas casas e Maria faz o mesmo. Ela não sabe se deve se esconder ou ficar na rua. É difícil ficar em casa ouvindo os gritos quem vêm lá de fora. Podem estar precisando de ajuda. Ela sai e a cena que vê é dura. Metade dos barracos da parte baixa está ardendo em chamas. Os adultos gritam e as crianças choram. Maria corre em direção ao tumulto. Uns dizem que foi a polícia, outros os bandidos, outros ainda, que a polícia é os bandidos. Maria não entende o que está acontecendo, mas oferece abrigo para os que tiveram seus barracos queimados.

Quando acorda no dia seguinte, os vizinhos já estão construindo novos barracos. Muitas famílias vão embora. Talvez realmente não valesse a pena arriscar tanto assim a vida, mas Maria estava completamente levada pela emoção e pedia, quase que implorando, pra que eles não desistissem. Fraca, quem acaba desistindo é ela, que vai morar com uma amiga da faculdade.
Alguns dias depois Maria volta e traz sua amiga Amanda, que está quase se formando em direito. Elas se reúnem com os moradores e os orientam na forma como proceder pra denunciar os policiais criminosos. As queimadas são interrompidas. Muitos acham que foi a série de denúncias, outros, que os policiais desistiram pela resistência do povo. Seja lá o que houve, Maria nunca mais foi a mesma. Uma sensação de satisfação a domina, por ter se transformado numa pessoa viva... Viva como são os personagens que tanto pesquisou.